De artigo de Moacyr Scliar, na Folha.
Fezes e gases
As anedotas costumam girar em torno de uma "dupla produção" do intestino grosso (e aí o qualificativo "grosso" é mais que apropriado): fezes e gases, ou flatos. Do anedotário popular o tema migrou para a literatura, e aparece já no século 5º a.C.: a peça teatral "As Nuvens", de Aristófanes, tem cômicas passagens sobre gases. Em "A História do Moleiro" ("The Miller's Tale"), de Geoffrey Chaucer, que data do século 14, o personagem Nicholas humilha o rival Absolom pondo o traseiro para fora da janela e soltando gases na cara deste.
Em "Gargantua e Pantagruel", de François Rabelais (c. 1494-1553), que aliás era médico, o gigante Pantagruel solta um sonoro flato que "fez a terra tremer". Deste gás malcheiroso surgem mais de 23 mil anõezinhos, prodígio que antecipa em vários séculos o realismo mágico.
Franklin Já Benjamin Franklin (1706-90), um dos líderes da Revolução Americana e verdadeiro polímata --jornalista, escritor, editor e cientista conhecido por suas experiências com eletricidade--, optou pelo ensaio satírico. Em resposta a um pedido de artigos científicos feito pela Real Academia de Bruxelas, instituição que considerava, como outras similares, "pretensiosa", Franklin, então embaixador em Paris, escreveu, por volta de 1781, "A Letter to a Royal Academy" ("Carta a uma Real Academia"), sugerindo pesquisas no sentido de melhorar o cheiro da flatulência humana.
A carta, que nunca foi enviada, diz, entre outras coisas: "É fato universalmente reconhecido que, ao digerir o alimento, produz-se, nos intestinos dos seres humanos, uma grande quantidade de gases. Permitir que estes escapem e misturem-se ao ar atmosférico é usualmente ofensivo". Para obviar esse inconveniente, Franklin propõe que os cientistas estudem os gases intestinais e desenvolvam substâncias que, misturadas à comida ou aos molhos, tornem a flatulência "não apenas inofensiva, mas agradável".
Franklin distribuiu cópias impressas de seu ensaio a vários amigos, inclusive Joseph Priestley, químico famoso por seu estudo dos gases e que, portanto, deveria interessar-se pelo assunto. Após sua morte, o texto, conhecido como "Fart Proudly", ("Peide com orgulho"), foi convenientemente esquecido e depois recuperado; apareceu, em 1990, numa antologia organizada por Karl Japikse e publicada pela Enthea Press intitulada "Fart Proudly - Writings of Benjamin Franklin You Never Read in School" ("Peide com Orgulho - Escritos de Benjamin Franklin que Você Nunca Leu Na Escola").
Arte de peidar Trinta anos antes da carta de Franklin, em 1751, o francês Pierre-Thomas-Nicolas Hurtaut já havia publicado, sobre o tema da flatulência, um livro recentemente lançado no Brasil, em tradução de Bruno Feitler: "A Arte de Peidar" (ed. Phoebus). Tem como subtítulo: "Ensaio Teórico-Físico e Metódico para o Uso das Pessoas Constipadas, das Pessoas Graves e Austeras, das Senhoras Melancólicas e de Todos Aqueles que Insistem em Permanecer Escravos do Preconceito", e já começa com uma admoestação: "É vergonhoso, leitor, que, apesar de peidares desde sempre, ainda não saibas como fazê-lo [...]. Peidar é uma arte e, consequentemente, coisa útil à vida".
O autor define o que é peido (diferenciando-o do arroto), faz uma classificação dos peidos de acordo com sua musicalidade: peidos mudos, peidos plenivocais. E fala dos peidos ditongos, dos peidos femininos e dos peidos de pedreiro. Defende o flato como um instrumento civilizatório, educativo mesmo, capaz de colocar em seu lugar os inoportunos e os chatos: "Em um jantar, no salão, um peido no momento certo interrompe uma tagarelice".
Hurtaut, que tinha 32 anos quando publicou seu trabalho, era um homem culto, professor de latim e autor de vários livros sobre temas variados, incluindo um dicionário de homônimos da língua francesa. No estilo dos "Ensaios" de Montaigne (que, aliás, também abordou o tema em "Sobre a Força da Imaginação", de 1580), "A Arte de Peidar" conjuga o tom faceto com uma grande erudição.
Esta é também a marca distintiva de "It's a Gas - A Study of Flatulence" (Xenos Books), de Eric Rabkin e Eugene M. Silverman, o primeiro, doutor em filosofia, o segundo, médico. É um levantamento histórico, literário e também fisiológico da flatulência, com reproduções das obras de artistas famosos: Aubrey Beardsley, Pieter Brueghel, Hyeronimus Bosch, James Ensor.
Palco
É possível levar ao palco a flatulência como arte; foi o que fez o flatulista ("farteur" ou "fartiste", em francês) Joseph Pujol (1857-1945). Pujol tinha um incrível controle da musculatura abdominal e do períneo, o que lhe permitia modular, por assim dizer, as emissões de gás. No começo, imitava instrumentos musicais, mas conseguia também, introduzindo uma ocarina no ânus, executar melodias como "O Sole Mio" e até a "Marselhesa" (o que deve ter revoltado os patriotas franceses).
Exibia-se no Moulin Rouge e seu público incluiu figuras famosas, como Eduardo, príncipe de Gales, Leopoldo 2º, rei da Bélgica, e Sigmund Freud. Pujol ficou conhecido como "Le Pétomane" (algo como "peidomaníaco") e inspirou livros, filmes e musicais. Mais: fez escola. Um de seus discípulos é o britânico Paul Oldfield, mais conhecido pelo nome artístico de Mr. Methane, o Sr. Metano, que deixou seu trabalho como ferroviário para se apresentar em shows.
domingo, 12 de setembro de 2010
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